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Reportagem

O FILME 'A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER'

Como o escritor Milam Kundera contribuiu para contar uma história repleta de mudanças;

 em que vidas oprimidas são renovadas por um amor intenso

por Cássio Lima
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Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche e Lena Olin formam um dos triângulos amorosos mais festejados do cinema; entremeio a invasão soviética na Tchecoslováquia | FOTO: divulgação 

O ROMANCE

 

Ao escrever o romance 'A Insustentável Leveza do Ser', o autor Milam Kundera enuncia o peso da vida, que se manifesta em toda forma de opressão. Os capítulos mostram como, as escolhas e apreços que nos primeiros tempos possui uma leveza envolvente, acaba adiante se revelando sob um peso insustentável. Talvez, a vivacidade e a mobilidade da inteligência escapam à condenação, no princípio. Assim, as linhas que estruturam o romance não pertencem ao universo fora do permissível, do que é experimentável, para tanto se deve estar disponível. O livro, de 1982, têm quatro protagonistas: Tereza e Tomas, Sabina e Franz. Pelo impulso de suas escolhas ou por interferência política-social, a invasão soviética na Tchecoslováquia, cada personagem experimenta, à sua maneira, o peso insustentável que baliza a vida, esse permanente exercício de reconhecer a opressão e de tentar amenizá-la, ou pelo menos torná-la mais leve.

 

Em 1988, na tentativa de retirar as frases do papel e arremessá-las sobre a tela grande, a versão em filme do romance foi lançada nos Estados Unidos. Na película, o jovem cirurgião Tomas (Daniel Dey-Lewis), trata a liberdade e a busca pela felicidade como problemas dos outros. O galanteador está mesmo concentrado é na “felicidade da busca”, já que está determinado a levar a vida com uma leveza alheia a quaisquer compromissos e ideologias políticas. Todavia, o seu plano pode naufragar. Afinal, apesar de ser um grande clichê, é verdade que há escolhas que o coração faz sem a ajuda da razão. Com um belíssimo e sensual roteiro “A Insustentável Leveza do  Ser” trouxe ao cinema um dos clássicos da literatura mundial. Produzido por Saul Zaentz (O Paciente Inglês e Amadeus) e dirigido por Philip Kaufman (Os Eleitos). O filme traz ainda Juliette Binoche e Lena Olin, em um dos triângulos amorosos mais festejados do cinema. Uma história de reencontros, onde a leveza pode ser o antídoto de enfrentamento da perda continuada de liberdade, essa sufocada pelo emudecimento democrático via consolidação da cortina de ferro soviética, na europa oriental.   

 

O blog “Reflexos - entre sociedade e cinema” traça um paralelo da narrativa cinematográfica com a probabilidade de recuo dos espaços de fala das minorias no Brasil. A intenção, é detectar a capacidade de resiliência de uma sociedade que caminha nos entremeios das conquistas asseguradas, frente à retomada do discurso conservador. Até que ponto o lado permissivo do ser, em todas as suas controvérsias, será permitido em uma “liberdade” polarizada? Onde a perda do diálogo com o desconhecido-diferente não para de crescer.

 

OS PERSONAGENS

 

Em Praga de 1968, vivia um jovem médico chamado Tomas. A Mulher que mais o compreende é Sabina, uma artista plástica aberta ao sexo casual. Entretanto, foi enviado a um SPA para realizar uma operação. Por lá, conhece a garçonete Teresa, que serve conhaque para ele, depois do procedimento cirúrgico. Ela é romântica e vê coincidência em tudo, no número do quarto de hóspede de Tomas, no banco onde procura ler romances. Ele volta para Praga e ela fica sozinha no SPA. Tomas começa a pensar em Teresa, mesmo Sabina lhe compreendendo mais. Teresa vai a Praga e procura Tomas, ela busca  um novo emprego. Eles dormem juntos.

 

Há uma sensação de descontinuidade nas primeiras cenas do filme. O desejo guia os personagens num ímpeto de liberdade estonteante, antes da invasão soviética. “Quando os sentimentos ganham expressividade, é comum o agir desprogramado. Tudo fica a espera do que poderá ocorrer, ou não”, explica a psicóloga Amanda Tedesco quando questionada sobre a disponibilidade que as pessoas devem ter para fazer escolhas. Há um mito de que todas as decisões para dar certo, devem ser tomadas friamente, eliminado possíveis riscos. “Muito do que experimentamos não vem acompanhado de entendimento, às vezes, ele vem só depois, alguns levam anos”, acrescenta Tedesco.

 

Teresa não é qualificada, apesar de gostar de tirar fotos, a garçonete não tem referências profissionais. Tomas pede ajuda a Sabina para arrumar emprego à sua nova hóspede, então, a artista plástica apresenta algumas fotografias de nus artísticos. “A descoberta tem que ocorrer no espaço do outro, sem invasões. Cada pessoa tem um tempo de disponibilidade diferente”, alerta Tedesco. A personagem Teresa prefere tirar fotos de pessoas vestidas e comuns, registrando o cotidiano de Praga.

 

A invasão soviética  acontece sob os barulhos dos tanques de guerra pelas ruas de Praga. Então, os soldados russos ocupam o país. A população civil sobe em cima dos tanques de guerra. Alguns saem da capital, Sabina resolve ir para Genebra. As mortes são inevitáveis. Porém, a população continua nas ruas.

 

Teresa passa a registrar os horrores da invasão, as rajadas de metralhadora, os massacres e as ordens dos generais, sempre ao lado de Tomas. O ambiente externo é de caos. Teresa consegue encaminhar as fotos para as agências internacionais, na esperança de serem publicadas. No esforço, tem a sua máquina fotográfica confiscada. Então, Tomas é Teresa decidem ir para Genebra, mas, os jornais suíços não interessam mais pela invasão. Com as mudanças, a personagem de Juliette Binoche apresenta-se mais madura, o sofrimento a faz tomar decisões estruturantes na vida.

 

A psicóloga Amanda Tedesco enfatiza que as evoluções ocorrem entre sofrimentos, onde a dor e a alegria são ingredientes comuns para quem decide arriscar. “Tomas e Teresa nos ensina a agir, mesmo sem deduzir resultados. Os personagens estão a procura, isso é positivo. Os amadurecimentos ocorrem aí”, reforça. Em meio às lembranças de Praga, Tomas e Sabina se reencontram em Genebra. Eles ficam juntos outra vez.

 

Teresa também encontra Sabina, agora como fotógrafa de um jornal que lhe deu a missão de registrar fotos de mulheres nuas. Sabina a ajuda, despindo sob a lente de Teresa. A fotógrafa está reprimida, se sente inibida com o novo trabalho. Mas, no ensaio, elas começam a se tocar. Depois, Sabina faz Teresa tirar a roupa, agora é a vez da garçonete que a princípio corre pelo quarto querendo fugir dos clicks. Após algum tempo, Tereza consegue encarar a câmera, tira a roupa e se exibe completamente nua. Ao terminar, elas se beijam. O rompimento da opressão ocorre no contato com o feminino, sem a presença do masculino.

 

A agente comunitária de saúde, Jennefer Caroline de Souza, se inscreveu num projeto de pesquisa teatral voltado só para mulheres. O objetivo é semelhante ao da personagem do filme, vencer a timidez e tornar-se expressiva. “Estar aqui melhora o meu estilo de vida, me ajuda a descobrir o desconhecido e aumenta a minha coragem de viver. As meninas ajudam muito”, conclui. A atividade acontece na Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais.

Ainda em Genebra, um engenheiro chamado Lantz conhece Sabina. Ele desiste do casamento pra ficar com a artista plástica. Entretanto, Sabina não consegue ficar com ele, decidi fugir novamente para os braços de Tomas. Ela convida o médico de Praga a mudar para a América, ele responde que talvez um dia. Mas, é Teresa que vai embora e leva na bagagem o animal de estimação da família. Também, deixa uma carta de despedida para Tomas.

O RETORNO À TCHECOSLOVÁQUIA

 

“Tomas, eu sei que deveria ajudá-lo. Mas não posso. Ao invés de ser o seu apoio, sou o seu peso. A vida é muito pesada para mim e é tão leve para você. Não consigo suportar essa leveza, essa liberdade. Não sou forte o suficiente. Em Praga, eu precisava de você apenas para o amor. Na Suíça eu dependia de você para tudo. O que aconteceria se você me abandonasse? Estou fraca. Estou voltando ao país dos fracos. Adeus. Sinto muito, mas levei Karenin [a cachorrinha]” - trechos da carta de Teresa, retirado do romance de Milam Kundera

 

Assim que Teresa desembarcou em Praga, a câmera fotográfica dela foi confiscada pelos soviéticos. Em Genebra, Tomas recorre aos livros, a caminhada nos parques, mas também à solidão. Então, resolve voltar para Praga. Na alfândega, tem o passaporte confiscado. Ele bate a porta, ela abre. Na conversa, confessam que não sabem o que fazer no novo país. Porém, decidem recomeçar juntos. Eles se amam novamente, mesmo com a ditadura soviética do lado de fora. Ao que parece, o amor de verdade bateu a porta dos dois personagens principais da película.

 

Para recomeçar, Tomas teve que se retratar e adequar-se ao novo regime, mas continua como médico. O silêncio pela liberdade. Mesmo assim, é questionado pelo Ministério das Relações Interiores da Tchecoslováquia sobre sua afirmação “os comunistas deveriam arrancar os seu próprios olhos”. O artigo de Tomas contribuiu para a histeria soviética, que exigiu que ele assinasse um documento oficial, ao não aceitar, foi impedido de exercer a medicina, passou a lavar vidraças. Teresa volta a ser garçonete.

 

Para o historiador Fernando Sabino, um regime autoritário traz estragos inimagináveis na vida dos sujeitos, não é apenas uma perda de liberdade, as marcas da opressão atinge o inconsciente. “As pessoas que são submetidas a situações de extrema opressão, cotidianamente, se sentem fragilizadas, deslocadas, têm dificuldades de adaptar a lugares em que viveram há anos”, conta Sabino. O filme mostra o deslocamento dos personagens forçado pela ditadura, a perda do espaço de fala expresso na obrigação do silêncio.

 

As traições continuam em Praga. O comportamento do médico motivou Teresa a transar com um “desconhecido” pela primeira vez, um engenheiro que ela conheceu no bar, onde trabalha servindo bebidas. “As torturas física e psicológica contribuem para a perda de valores que norteiam as condutas. O desequilíbrio social mais o vazio de representatividade fazem os indivíduos esfacelarem, tornarem-se invisíveis”, aponta Sabino ao retratar como a ausência de liberdade política pode afetar aspectos da subjetividade humana, mesmo aqueles ligados ao ambiente extra-político. A experiência sexual faz a personagem de Juliette Binoche entrar em parafusos, a ponto de não conseguir reencontrar com a cidade. O sentimento de inadequação toma conta de Teresa que decide ir embora.

 

Com os passaportes retidos pelo governo, o casal decide morar na parte rural do país, no sítio da família que foram os únicos a testemunhar o casamento deles. Por lá, a cachorrinha de estimação karenin é acometida de câncer, para estancar o sofrimento, eles a sacrificam. “A única forma de resistir é buscar os pares ideológicos. A recomposição da representação de classe. A resistência está no reconhecimento ao outro, como parte de si  mesmo”, finaliza o historiador. O trabalho que restou aos personagens foi arar a terra, cuidar das vacas e dos amigos que também perderam empregos e posições com a invasão soviética.

 

A RESILIÊNCIA

 

'A Insustentável Leveza do Ser' abriga a capacidade de resiliência quando as mudanças externas não retira a capacidade de superação dos personagens, esses continuam a buscar felicidade, mesmo em meio as perseguições. A melhor contribuição do autor do livro que inspirou o filme, Milam Kundera, está no repetir das constantes mudanças, algumas imprevisíveis, onde, as vidas oprimidas são renovadas por um amor intenso, que insiste em recomeçar.

 

A psicologia define a resiliência como a capacidade de o indivíduo lidar com problemas, adaptar-se a mudanças, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações adversas - choque, estresse, algum tipo de evento traumático, etc. - sem entrar em surto psicológico, emocional ou físico, por encontrar soluções estratégicas para enfrentar e superar as adversidades. Manter a imunidade mental é a base para criar resiliência emocional. O indivíduo condiciona a mente a tolerar os pensamentos assustadores e consegue esquivar-se do sofrimento ao entender que a dor fará, inevitavelmente, parte da trajetória de vida

 

A ex-ministra da Igualdade Racial, Nilma Lino Gomes, afirma que o acirramento de forças conservadoras, capitalistas, de extrema direita no Brasil - obriga lutar pela Democracia, que está em risco, onde todos os avanços das minorias tendem a fragilizar, como: as mulheres, os negros e os LGBTQ+. “O que se coloca na onda de conservadorismo de extrema direita é uma recusa de um trato afirmativo de direito da diversidade, isso está colocado em jogo”, alerta Gomes quando questionada sobre o crescimento do discurso de ódio no país. Uma possível resistência apontada pela pedagoga está no agir com força, sabedoria e prudência para fazer valer o que já foi conquistado, além de tensionar para gerar avanços noutras áreas.

 

Nas últimas cenas da película 'A Insustentável Leveza do Ser' - a alegria ficava por conta da taberna do vilarejo, onde os personagens dançam embalados por músicas típicas do país. Em uma noite dessas, eles beberam e se divertiram. Tomas e Teresa resolveram pernoitar na vila, enquanto os outros voltam para o sítio, embriagados, todos morrem em um acidente fatal. Na fotografia final, Daniel Day-Lewis e Juliette Binoche retornam ao sítio, eles não sabem da tragédia. Na imagem, o caminho visto de frente é acompanhado por um profundo silêncio, que preocupa Teresa. Após algum tempo, Tomas encerra o filme dizendo que pensava no quanto eles são felizes.


Ficha técnica 

 

- 'A Insustentável Leveza do Ser'

​​Ano de produção: 1988

Diretor:  Philip Kaufman

Estreia: 5 de fevereiro de 1988 (Mundial)

Duração: 171 minutos

Gênero: Drama Romance

País de Origem: Estados Unidos da América

 

Personagens

Daniel Day-Lewis - Tomas (Médico)

Juliette Binoche - Teresa (Fotógrafa)

Lena Olin  - Sabina (Artista Plástica)

Derek de Lint  - Franz (Engenheiro)

 

Inspiração:

Baseado no romance de Milan Kundera

Trilha sonora - Hey Jude

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