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Reportagem
A RESISTÊNCIA QUE SURGE DO CINEMA
A nova forma dos excluídos se verem; após uma leva de ‘filmes de lutas’ entrarem
na agenda de festivais e salas de projeção
por Cássio Lima
O caminho por onde as histórias são contadas diz muito sobre quem as protagonizam. O recorte, o olhar cinematográfico, o desenho percorrido pela lente da câmera, os enquadramentos - tudo isso remonta o foco, a quem pretende atingir. Na trajetória do cinema, muito se viu falar sobre os excluídos, pessoas que por questões sociais e/ou culturais, também por limites econômicos que restringem oportunidades, se veem sem condições de atravessar a linha de chegada. Durante o seu discurso pelo prêmio de melhor atriz em drama, no Emmy de 2015, a atriz negra norte-americana Viola Davis, admitiu que o muro de separação se levanta no acesso aos bons personagens. No Brasil, onde mais de cinquenta por cento da população está entre negros e pardos, a partir do ano 2000 nasceu uma nova perspectiva.
Atriz norte-americana, Viola Davis: 'A única coisa que separa as mulheres de cor de qualquer outra pessoa é a oportunidade' | Fonte: ManiacsSubs

O cinema no Brasil sempre dependeu em grande parte do investimento estatal, uma herança da censura da Ditadura Militar. A livre iniciativa demorou para chegar. Mesmo o governo incentivando nos últimos tempos a parceria público-privada, com os incentivos tributários, porém, a indústria pouco se mexeu. Apesar disso, com os novos recursos tecnológicos, que impactou decisivamente no orçamento das produções nacionais, fez surgir uma nova forma de produzir cinema. Novos diretores resolveram ir para as comunidades dos grandes centros urbanos brasileiros. Com uma câmera na mão e milhares de ideias na cabeça, uma tendência se avistou.

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Para tanto, a gente tem que retornar a 2003, 2004 e 2005 sobre um ponto de vista, focar nos meios digitais e como isso possibilitou o aumento da produção audiovisual. Também, como as pessoas comuns da periferia se projetam nas telonas, as motivações da escolha por atuar e os impactos da imagem antes privada e agora pública - enfim, como a exclusão vira arte. Nesta reportagem, o blog “Reflexos - entre sociedade e cinema” quer saber a nova forma dos excluídos se verem; após uma leva de ‘filmes de lutas’ entrarem na agenda de festivais e salas de projeção.

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Todavia, um outro gargalo foi encontrado com as novas tecnologias: distribuição e exibição. Então, temos que pensar nas várias fases e momentos onde as pessoas são impedidas, ou não podem assistir os filmes de resistência. Portanto, o cinema brasileiro é como se fosse uma vela, ele apaga e acende de novo.

 

RESISTÊNCIA NO CINEMA

   

O Cinema Brasileiro vive uma retomada com os filmes de resistência. A tendência tem conseguido espaço nos festivais e mostras dentro e fora do país. O fomento ocasionou o surgimento da categoria “Cinema de Lutas”. O que salta aos olhos nesta narrativa é que alguma coisa precisa ser mudada, onde os sujeitos mostram um cotidiano pela lente dos excluídos. Por aqui, negros, indígenas, quilombolas, mulheres e LGBTQ+ têm encontrado um promissor local de fala.

 

Infelizmente, grande parte deste aquecimento da indústria se deve aos dispositivos tecnológicos que propiciaram várias iniciativas independentes, apesar do governo tentar motivar o setor com a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Neste cenário, os festivais tornaram o grande terreno de visibilidade dos filmes de resistência. Além de serem exibidos, as produções são discutidas e aprimoradas.

 

Em um momento de instabilidade política, onde o ódio pelas minorias fica cada vez mais evidente, é preciso que temas como o “Cinema de Lutas” permaneça em cartaz. Contudo, se deve buscar uma narrativa pela angulação dos excluídos, dando voz e visibilidade para aqueles que não se vêem com frequência na tela grande. Também, ouvir a periferia numa conversa compartilhada, onde reconhecer no outro uma extensão de si mesmo, poder ser uma parte constitutiva de toda uma resistência em movimento.

 

O ARTISTA DA PERIFERIA

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Em Minas Gerais, Uberlândia têm 720 mil habitantes, segundo o último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010. Nas décadas de 60 e 70, a cidade começou a ter um salto populacional impulsionada pela circulação de mercadorias e, obras de infraestrutura que trouxe ao Município o cruzamento de grandes rodovias federais, o que facilitou o acesso. O resultado foi uma grande migração de pessoas para a região, impulsionando o mercado imobiliário e a construção ‘afastada’ de conjuntos habitacionais. Os vazios urbanos originaram várias ocupações de famílias sem teto. A periferia em duelo com a especulação tem gerado tensões, também, percepções adversas sobre o direito de pertencimento à cidade.

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A doméstica Maria Abadia dos Santos levanta cedo. As seis da manhã já está de pé, pois precisa chegar às oito na casa da patroa, uma viagem de ônibus que leva uma hora e 30 minutos. Ela nunca se viu projetada sobre uma tela de cinema. A realidade é algo impossível, fora de possibilidades. “Eu tenho 54 anos e sempre trabalhei em casa de família. Eu gosto de assistir a minha ‘novelinha’. Artista só na televisão”, conta Santos de forma bem descontraída, quando perguntada o que faria se fosse convidada para fazer um filme. A resistência só consegue ser exercida com a ampliação da consciência. Ela rompe o lugar socialmente dado àquele que está geograficamente excluído. Os horizontes que surgem com os novos papéis trazem à cena um protagonismo antes inimaginável.

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A imersão nas periferias em busca de atores e atrizes deve obedecer alguns pré-requisitos, é o que alerta o psicólogo Gaspar Cunha. ‘A primeira resistência a ser combatida é a do sujeito, que geralmente está acomodado no ambiente retraído. Existe um inconsciente que briga contra o novo”, relata Cunha ao afirmar que o impasse inicial é rompido com a liberdade de poder ser uma outra coisa, um artista por exemplo. A relação com o cinema deixa de ser contemplativa para se tornar acessível, cotidiana.

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Em 2017, a diretora mineira Juliana Antunes viveu essa aventura. O filme documentário Baronesa, mostra o dia a dia de duas vizinhas e amigas que moram na periferia de Belo Horizonte. De um lado, Andreia começa a construir sua casa para se mudar. Do outro, Leid e os filhos estão à espera do marido, que está preso. Em comum, a necessidade de se desviar dos perigos da guerra do tráfico e, a estratégia para evitar as tragédias trazidas como consequência. A película retrata ainda, como os espaços de poder são apropriados na favela, onde o protagonismo feminino brota com andamento das cenas. As personagens migram para uma naturalidade, sem maquiagem. A realidade nua e crua traz para tela a vida como ela é. Baronesa remete ao desafio de buscar mulheres que protagonizam, mesmo tendo um estranhamento inicial, quando a proposta é viver a experiência de serem filmadas.

O documentário 'Baronesa' evidencia o papel das mulheres nos espaços de poder das favelas brasileiras 
| Fonte: Canal Curta

O filme Baronesa levou para casa o troféu “Aurora” do festival Tiradentes deste ano. O longa está a procura de parceiros para entrar em cartaz nos cinemas. “Nós começamos a buscar por mulheres, mas, elas não estavam nas ruas. Um dos locais de encontro possíveis eram os salões de beleza. Eu comecei a frequentar esses locais”, explica a diretora Juliana Antunes sobre a formação do elenco, para o início das filmagens. A cineasta conta que o roteiro do filme surgiu nas conversas com a comunidade, assim como, os personagens. “Eu fiquei cinco meses morando lá. Optamos por uma estrutura mínima, pois íamos entrar na casa das pessoas. A produção custou 54 mil reais”, acrescenta.

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Na medida que os filmes de resistência procura o retrato fiel do cotidiano, a tendência passa a ser um instrumento de lutas, de protagonismo social. “A verdadeira liberdade vem de dentro para fora, mas, os estímulos externos pode potencializá-la”, enfatiza o psicólogo Gaspar Cunha ao defender o cinema como um lugar de superação do oprimido. Para ele, a sonhada alforria pode vitimizar os sujeitos com uma bagagem continuada de sofrimentos, contribuindo para o não protagonismo e, a falta de absorção dos direitos conquistados.

 

A NARRATIVA

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No ano de 2017 houve um rol imenso de filmes de resistência, de intervenção, que foram feitos por novos sujeitos e com novas maneiras de se fazer Cinema, novas práticas. São sujeitos não vistos, como: as mulheres, LGBTQ+, os indígenas, os quilombolas, as periferias. Os festivais tiveram amostras denominadas de "Cinema de Lutas". Também chamado de cinemas de intervenção, os filmes de resistência trazem três características importantes. A primeira é a imediaticidade de que alguma coisa precisa ser mudada, alguma luta exige engajamento. A segunda é a médio prazo, a criação de uma produção de contra-narrativa à mídia de massa. Por último, que esse volume de filmes produzidos possa se tornar memória.

 

Entretanto, um gargalo surgiu com a nova tendência: distribuição e exibição. Muitos filmes não conseguem entrar no circuito de exibição ao grande público, restringido apenas ao roteiro dos festivais e mostras. Apesar das dificuldades, o volume de produções não tem diminuído, como aponta a Agência Nacional do Cinema, que projetou um aumento de trinta por cento nas produções de 2019.

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Nos últimos tempos, o Brasil tem recebido uma proliferação do discurso de ódio, devido ao crescente acirramento político. A tendência aqui é a prevalência da visão única diante do contraditório, com grande parte do tecido social reprimido em ‘bolhas segmentadas’. Neste contexto, a geografia do espaço de fala das ‘minorias’ levanta preocupações, seja na manutenção de garantias sociais, como também na expansão de direitos. “O fato é que as ‘minorias’ sempre estiveram fora dos espaços de poder, ou quanto muito, ocuparam uma posição subalterna”, relata o antropólogo Luciano Senna ao debater sobre a massificação do debate político.

 

Segundo o professor universitário, deve fazer uma distinção entre o debate e a prática e, até que ponto, a narrativa se transforma em atos de violência. “A agressão às minorias ocorre de forma disfarçada ou implícita no cotidiano, como nos casos de racismo e feminicídio - é aqui que a resistência deve estabelecer”, acrescenta. Senna diz ainda, que a permanência dos filmes de resistência neste ambiente político-social passa a ser um instrumento de lutas para sujeitos não vistos, sendo uma ratificação de garantias advindas da Justiça. “A questão é saber se o poder Judiciário irá se manter como garantia e, proteção dos direitos desta parcela da população”, finaliza.

 

A PERMANÊNCIA

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A díficil tarefa dos Filmes de Resistência é deixar de ser tendência e, passar a ter uma regularidade de produção na indústria cinematográfica do país. Uma realidade que esbarra na comercialização dos filmes, assim como, na geração de rentabilidade - é o que diz a pesquisadora em audiovisual, Iara Magalhães. “Há uma luta para que a sétima arte se torne indústria no país, ou seja, tenha uma cadeia eficiente na produção, distribuição e exibição” explica.

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Todavia, a pesquisadora aponta algumas iniciativas que têm contribuído para a consolidação do cinema de lutas: “As inúmeras experiências do Cinema nas universidades, coloco aqui o "Inventar com a Diferença" da Universidade Federal Fluminense. Segundo, os festivais e curadorias com mais liberdade e democracia”, argumenta Magalhães ao destacar os novos sujeitos que estão fazendo filmes e para quem eles estão fazendo.

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Outro ponto destacado foi o trabalho da Agência Nacional do Cinema (Ancine), com a finalidade de regular o mercado. “Temos que brigar para que não haja retrocessos, como têm acontecido em várias áreas deste país. Caso contrário, ocorre uma interrupção nesta retomada”, finaliza Magalhães.

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Alguns filmes de resistência tem conseguido resistir bravamente e, entrado no rol de filmes de lutas. A lista é composta por: "Missão com Cadu", "Baronesa", "Morri na Maré", "Travessia", "O Povo da Terra do Rio" e outros tantos.

“Morri na Maré” é um documentário sobre o impacto da violência sobre as crianças da favela Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, contado a partir da visão delas. Foi realizado por dois jornalistas franceses, Marie Naudascher e Patrick Vanier | Fonte: Agência Pública

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