Reportagem
O FILME 'A LIBERDADE É AZUL'
As várias faces da livre expressão em tempos de discursos homogêneos
por Cássio Lima
Em A liberdade é Azul: 'Traumatizada pela morte trágica do marido e da filha, Julie se afasta das pessoas, mas, a música a conecta com o passado e a liberta para o futuro | FONTE: Trailer Oficial
O FILME
Uma viagem que termina em tragédia, o carro da família bate em um árvore, onde pai e filha morrem instantaneamente, apenas a mulher sobrevive, Julie Vignon (Juliette Binoche). Em recuperação no hospital, Vignon começa a quebrar as vidraças da unidade médica, em uma atitude de repulsa ao acontecido, de não admitir as perdas. A modelo famosa tenta suicídio, com uma combinação de remédios, mas, não tem coragem suficiente para ir até o fim. Ela confessa que quebrou as janelas do corredor. A enfermeira diz para não se preocupar, porque não é nada grave.
O filme a ‘Liberdade é Azul’, do diretor polonês Krzysztof Kieslowski, recorre aos aspectos fora da linguagem, para mergulhar no inconsciente de quem assiste. Nas primeiras cenas, em uma tentativa de fugir da realidade, a personagem de Juliette Binoche decide abandonar tudo que relembre o esposo, um músico famoso, também, a filha, que morre aos cinco anos. A mulher tem que lidar com essas perdas, seguir a vida, além, de receber a missão de finalizar uma composição para coro e orquestra, que havia sido encomendada ao esposo - uma canção pela unificação da Europa. A tarefa a levará a descobrir detalhes da vida do esposo que ela desconhecia e, a se envolver com um outro homem, amigo do casal.
Todo o filme trabalha a ideia da busca pela liberdade, como o título sugere. Porém, não se trata de algo que é visto explicitamente. Entretanto, o azul pode ser visto como uma ‘simbologia’ ao estado de melancolia de Julie Vignon, também, a luta dela contra esse sentimento, à medida que o filme é projetado.
Para tanto, o diretor utiliza filtros que deixam as imagens menos saturada, e assim, consegue cercar de azul tudo que está em volta da viúva. É como se o mundo não quisesse que Julie se esqueça que está sozinha, ou seja, uma espécie de película protetora. Nas últimas cenas vem a redenção. A personagem passa a ganhar destaque, por suas qualidades. Então, a amante, recém descoberta, de seu falecido marido, contribuí para Julie voltar à realidade da vida. Em suma, a liberdade que ela tanto buscou ao se isolar da sociedade, só será alcançada quando aceitar que precisa seguir em frente.
O DIRETOR
Krzysztof Kieslowski iniciou sua carreira na Polônia, mas sempre foi influenciado pelo cinema francês. O que é evidenciado nos longos planos sem cortes e, um uso intenso das cores - características que o diretor sempre buscou utilizar. Também, a redução dos diálogos e o uso intenso de uma linguagem sem falas torna seus filmes mais sensíveis, exigindo atenção do público nos desdobramentos das cenas.
A simbologia do filme já é sentida logo no título original, Trois Couleurs: Bleu (Três Cores: Azul, numa tradução literal). A película foi, desde sua produção, concebida como a primeira parte da chamada trilogia das cores (seguido por ‘A Igualdade é Branca’ e ‘A Fraternidade é Vermelha’). Assim, nem a escolha das cores, como as temáticas, são aleatórias. As cores remetem à bandeira da França, em que os temas partem dos significados originais da Revolução Francesa: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Em vários momentos a música toma conta, quando o azul está presente, seja em objetos ou mesmo na iluminação | FOTO: woomagazine.com
ENTRE SOCIEDADE E CINEMA
A construção da liberdade nunca é uma obra acabada, além de receber influências da sociedade em que vive, a pessoa manifesta estímulos que estão armazenados no seu inconsciente, explica o psicólogo Gaspar Cunha. “Não existe um futuro bom com um passado mal resolvido, o que inviabiliza uma liberdade verdadeira”, alerta Cunha sobre os mecanismos de defesa que são disparados quando alguém passa por grandes perdas, parecido com a personagem de Juliette Binoche.
Ainda segundo Cunha, as pessoas são construídas como seres sociais, ao começar no nascimento, elas recebem influências que nortearão as condutas futuras. “Os primeiros estímulos estão relacionados à forma como a pessoa que educa vê o mundo”, afirma o psicólogo ao defender que a liberdade ocorre quando a pessoa encontra a sua própria identidade e, estabelece uma conexão sadia com a sociedade.
Mesmo tendo início na subjetividade, a institucionalização da liberdade como elemento constitutivo da Democracia exige uma disseminação do discurso e da prática social nos cidadãos, salvaguardados ainda, pelo estado de direito. Portanto, a liberdade em si mesma é insuficiente, caso não esteja disseminada na vida social.
Em ‘Liberdade é Azul’, os aspectos da construção da personagem [Julie Vignon] comunica com uma sociedade voltada às garantias das liberdades individual e coletiva. Em outro contexto sócio-cultural, marcado pela truculência, tal conexão entre sociedade e cinema não seria possível. Portanto, o exercício das várias liberdades depende de uma configuração política de sustentabilidade do discurso democrático.
AS LIBERDADES
Um dos princípios básicos das liberdades é o direito de ir e vir, como está na Constituição 1988. Porém, tal conotação não se baseia apenas em aspectos da mobilidade social, mas, nas garantias de falas, principalmente, as que se contradizem. Sendo assim, uma Democracia consolidada não deve caminhar para discursos homogêneos, pelo contrário, o trato com a diversidade e minorias constituem a preservação de direitos de sujeitos excluídos de garantias básicas de um país, como é o caso do Brasil.
O fato é que o exercício democrático é algo em movimento, apesar de estruturar alguns formatos que podem migrar para uma tendência política, essa também tem o seu tempo de validade. Ao que parece, as disputas eleitorais têm caminhado para a polarização entre dois discursos hegemônicos, mas, com fortes elementos da subjetividade dos atores políticos, que são explorados maciçamente nos períodos de campanha eleitoral.
O sociólogo americano, Richard Sennett, em sua obra “O Declínio do Homem Público” alerta aos agentes políticos que não estiverem dispostos a ter sua vida privada, as histórias mais íntimas, estampadas nas páginas de jornais, revistas e mídias sociais, não devem aventurar pelos caminhos da vida pública. O professor da New York University escreve que a migração para a subjetividade nas últimas décadas, em detrimento da perda continuada da interação coletiva, trouxe a conexão humana para o privado, onde o indivíduo comunica com as massas via características de sua personalidade, não mais, por um sociedade organizada em entidades representativas de classe, como sindicatos e partidos políticos por exemplo.
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'A visão intimista é impulsionada na proporção em que o domínio público é abandonado, por estar esvaziado" - sociólogo americano Richard Sennett
| FONTE: do livro 'O Declínio do Homem Público'
Outro comportamento advindo dessa configuração social, apresenta-se, quando a pessoa precisa sair do território da individualidade e ir para o ‘emaranhado’ das opiniões adversas, ela prefere proteger-se em ‘bolhas segmentadas’, assim, refugia-se naquilo que está mais próximo do pensamento que carrega, distanciando-se do contraditório. Ao ser questionado sobre uma possível ruptura desse discurso polarizado, o antropólogo Luciano Senna responde questionando. “Qual seria o formato ideal de uma discussão democrática? Ou quais seriam as características para se identificar um diálogo de ideias num plano democrático?”, problematiza Senna.
O professor universitário afirma ainda, que os limites que definem os discursos legítimos estão sempre em disputa e, a crítica mais comum era a de que o “povo brasileiro” não participava da política. Neste cenário, o que mudou para o docente foi a procura por um discurso homogêneo. “Agora, para alguns, parcela deste mesmo “povo” comete um novo erro: não participa corretamente porque não sabe levar em consideração (ou respeitar) a posição contrária', teoriza. Senna vê com reservas se estamos presos aos nossos pares ideológicos, em polos tão bem definidos. Contudo, o antropólogo decidiu terminar a entrevista com um alerta ao declínio do discurso único, para ele, o enfraquecimento ocorre na perda de sentido instalada sobre o exercício da simples reprodução, ininterrupta, sem aprofundamentos.
Nesse contexto, é possível relacionar a acomodação dos sujeitos em pares ideológicos, com a fuga da principal personagem de ‘A liberdade é Azul’. Nas primeiras cenas, o que fica evidente em Julie Vignon é o desprendimento com o passado. A liberdade só pode constituir-se na capacidade de se reformular, de se fazer de novo. Portanto, sem tal entrega, tal processo é impossível. Também, ao se definir como mulher, Vignon, não tem papas na língua, se descreve de cara limpa: ‘sou uma mulher como qualquer outra, tenho caries, eu tusso’ [trecho retirado do filme]. Então, a personagem deixa o amigo do falecido marido nu sobre a cama, após ter dormido com ele. Ao sair, pede para ele fechar a porta. Ao ir embora de onde vivia com a família, tenta vencer a dor da liberdade roçando o braço na parede de pedra. Ela sangra a mão. Entretanto, ela voltará, pois descobre que não poderia viver no isolamento. Nas últimas cenas, resolve encarar o contraditório, a realidade para além da fuga.
O CONTRADITÓRIO
A escola, mesmo nos primeiros anos da alfabetização, é o espaço onde as individualidades se misturam. Com todos os credos, níveis sócio-econômicos e lares com as mais diversas configurações caminham para uma única direção: o portão do colégio. Sendo pública ou não, tais estabelecimentos, representam de forma bem heterogênea a pluralidade de fala de um país mestiço e multiétnico como o Brasil. O desafio está no funcionamento do contraditório, como estabelecer uma relação de aprendizagem num ambiente marcado por diferenças, até que ponto a polarização do discurso pode influenciar na escola multicor.
Um assunto que vem tomando os espaços de jornais, revistas e debates calourados no Congresso Nacional é o projeto de lei ‘Escola Sem Partido’. Um movimento político criado em 2004 no Brasil. O deputado federal Erivelton Santana é o autor da proposta 7180/2014. As principais controvérsias da iniciativa está no interior do ambiente sala de aula. Caso o PL seja aprovado e sancionado pelo presidente da República, os docentes passarão atender alguns pré-requisitos.

A principal polêmica sobre o projeto de lei 7180/2014 está na relação ensino-aprendizagem | Arte: blog Escola Sem Partido
Em acordo com o texto da proposta, a iniciativa parte da Constituição Federal e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos:
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A liberdade de consciência e de crença e a liberdade de aprender dos alunos (art. 5º, VI e VIII; e art. 206, II, da CF);
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O princípio constitucional da neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado (arts. 1º, V; 5º, caput; 14, caput; 17, caput; 19, 34, VII, ‘a’, e 37, caput, da CF);
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O pluralismo de ideias (art. 206, III, da CF); e
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O direito dos pais dos alunos sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 12, IV).
Mas, para quem está dentro da sala de aula: é possível dissociar algo que está implícito na docência? Levando em consideração os tipos de linguagem, onde a verbal é apenas uma delas. Ao desenvolver sua teoria sobre a linguagem, o filósofo e pensador russo, Mikhail Mikhailovich Bakhtin, aponta para uma dinamicidade que dificilmente pode ser controlada. Para Bakhtin, a linguagem é um reflexo do mundo e do pensamento do indivíduo sobre este mundo, portanto, indissociável. Outra concepção importante está em ver a linguagem como instrumento de comunicação. Nessa dialética, a fala é desconsiderada e os elementos da comunicação entram em cena: emissor, receptor, código, canal, mensagem e contexto; também, em suas respectivas funções: emotiva, conativa, metalinguística, fática, poética e referencial - assim, mesmo com a “boca vedada” a mensagem pode ser emitida, utilizando outras elementos fora do verbal. O pensador chama atenção ainda para entender a linguagem como forma de interação entre os sujeitos da língua, agindo e interagindo com os mais diferentes objetivos. Enfim, educar é algo que nutre no contraditório, nas diferenças.
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Mikhail Bakhtin - "Não vejo o mundo com meus próprios olhos [...]; vejo a mim mesmo com os olhos do mundo, estou possuído pelo outro" | Foto: reprodução
A professora de Sociologia, Denise Gonçalves, encara o projeto de lei como um enorme retrocesso à profissão docente, interferindo e delimitando o conteúdo a ser trabalhado em sala de aula. “Coloca uma mordaça no educador. É um atentado a algumas teorias que foram construídas ao longo do tempo”, acrescenta. Para a educadora, a resistência a certos conteúdos de cunho esquerdista limita a aprendizagem. O aluno fica sem aprender o básico.
Mas, não é o que pensa a cientista social, Pricilla Camargo. “O Escola Sem Partido visa tão somente dar a possibilidade do aluno, em sala de aula, conhecer de maneira efetiva diversas vertentes políticas e ideológicas”, afirma Camargo ao defender o que seria a verdadeira análise oferecida ao aluno. A docente acredita que não haverá uma mordaça ao professor, apenas não permitirá que esse profissional use a sua cátedra para doutrinar seus alunos.
Quando a polêmica sai do ambiente sala de aula e ganha terreno nos espaços de decisão política, as controvérsias também ficam acentuadas. Em sua terceira legislatura na Câmara Municipal de Uberlândia, Adriano Zago, ao analisar o texto original da proposta em tramitação no Congresso Nacional, percebe que o texto caminha, ainda de forma imaginária, em direção a programas e projetos de engessamento na liberdade da exposição, expressão e discussão, em salas de aula, de temas importantes para sociedade. ‘Temos que nos atentar a alguns tópicos que de fato são preocupantes, principalmente a liberdade de ação dos profissionais da educação, em diferentes ambientes ligados a formação do cidadão”, alerta Zago. De acordo com o vereador, o “Escola sem Partido” expressa neutralidade política e ideológica, em outro ponto, o parlamentar chama atenção para o contraditório dentro do contraditório, ou seja, negar uma prática que no futuro poder ser repetida por seus opositores. ‘E de fato o cenário apregoado pelos idealizadores de fato era real? Ou apenas querem uma suposta troca de um fictício quadro de doutrina de esquerda e pautas sociais, por uma uma conduta mais racional, sectária e de direita?’, complementa.
Quem tem participado das discussões, em nível nacional, é o empresário Pedro Cherulli, que é um dos coordenadores do Movimento Brasil Livre em Minas Gerais, mais precisamente na região do Triângulo Mineiro. ‘A não aprovação do projeto de lei Escola Sem Partido já não se torna tão importante, quanto a obstrução do proselitismo político ideológico atualmente propagado com viés socialista”, explica Cherulli ao direcionar o debate para a formação do pensamento, que para ele transcende o ambiente escolar. O coordenador defende a discussão permanente e vê nos contrapontos um amadurecimento da proposta. O Projeto de Lei esteve na lista de debates do encontro nacional do MBL, em São Paulo, realizado no último mês de novembro. Em Uberlândia, um projeto similar está sob análise na Comissão de Legislação, Justiça e Redação. A expectativa é que a proposta municipal seja apreciada em plenário no primeiro semestre de 2019. As conversas entre Cherrulli e o próximo presidente da Câmara Municipal de Uberlândia, Hélio Ferraz, iniciaram este ano.
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'A ideia do projeto é válida, mas, o desafio está na formação de professores dos ensinos básico e médio, em uma universidade mais plural ' - Dennys Xavier
| FOTO: Pragmata
A sala de aula não é suficiente para superar um processo com mais de 30 anos de consolidação teórica, segundo o professor da Universidade Federal de Uberlândia, Dennys Xavier. ‘Não haverá mudança de comportamento do professor por força de lei, mesmo o projeto sendo legítimo, não haverá eficiência na prática”, admite Xavier. Para o filósofo, o que deve combater é o aparelhamento ideológico, formando professores a partir de uma perspectiva diferente dentro da universidade, não enviesada.
Independente das controvérsias, a construção do pensamento exige recomeços. A mobilidade social, somada, ao que somos hoje diferente do que já fomos no passado, exige tolerância consigo mesmo e com o coletivo. O que está em jogo é a prevalência do discurso único e a repulsa pelo debate, uma atmosfera política que fragiliza o exercício democrático, que se nutre e avança no contraditório.
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'A liberdade é viver a verdade, todos são livres à sua maneira'
| FONTE: trechos do filme 'A Liberdade é Azul'
Encarar o diferente exige resiliência, algo que é explicitado no encaminhamento das cenas finais de ‘A Liberdade é Azul'. Julie Vignon decide terminar o concerto pela unificação da Europa. Após saber que a amante do seu falecido marido está gravida. A personagem decide não mais vender a casa, então, a entrega como herança ao filho da traição. A película termina com Julie assistindo a peça musical finalizada, na verdade, revendo um concerto sobre a sua própria vida.
Ficha Técnica
Título: Trois Couleurs: Bleu (Original) - A Trilogia das Cores
Elenco: Juliette Binoche (Julie Vignon), Julie Delpy, Zbigniew Zamachowski
Ano produção: 1993
Dirigido por: Krzysztof Kieslowski
Estreia: 10 de Janeiro de 1993 ( Mundial )
Duração: 98 minutos
Gênero: Drama, Mistério, Música, Romance
Países de Origem: França, Polônia, Suíça
Música composta por: Zbigniew Preisner